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Com Dom José Roberto Fortes Palau

Religião

As tentações de Jesus

Publicada em 04/07/20 às 12:49h - 587 visualizações

por Dom José Roberto Fortes Palau


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 (Foto: pinterest)
AS TENTAÇÕES DE JESUS

Após o batismo, Jesus é conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo diabo (cf. Mt 4, 1). O recolhimento interior precede à ação, e este recolhimento também é necessariamente uma luta para manter-se fiel à missão; uma luta contra as deturpações da missão. 

A “Carta aos Hebreus” afirma que pertence à missão de Jesus não se negar às ameaças e aos riscos da condição humana: “Pois não veio ele (Jesus) ocupar-se com anjos, mas, sim, com a descendência de Abraão. Convinha, por isso, que em tudo se tornasse semelhante aos irmãos, para ser, em relação a Deus, sumo sacerdote misericordioso e fiel, para expiar assim os pecados do povo. Pois, tendo ele mesmo passado pela prova, é capaz de socorrer os que são provados” (Hb 2, 17-18). 

O episódio das tentações mantém uma estreita relação com a história do batismo, na qual Jesus se solidariza com a humanidade pecadora. Porém, as tentações não se configuram como um episódio avulso, único, ao contrário, as tentações acompanham Jesus até sua morte na cruz. Na realidade, as narrativas evangélicas das tentações realizam uma síntese da luta histórica de Jesus para manter-se fiel à sua missão messiânica.

1. Primeira tentação

“Por quarenta dias e quarenta noites esteve jejuando. Depois teve fome” (Mt 4, 2). O número 40 (quarenta) no tempo de Jesus possuía para Israel um conteúdo simbólico muito rico: recorda-nos em primeiro lugar os 40 anos de Israel no deserto, que foi o período da tentação, bem como o tempo de uma especial proximidade de Deus. O número 40 também leva-nos a pensar nos 40 dias que Moisés passou no monte Sinai, antes de receber a tábua dos dez mandamentos. Também podemos, e é lícito, associar o número 40 à explicação rabínica, segundo a qual Abraão, no caminho para o monte Horeb, onde deveria sacrificar o seu filho, Isaac, durante 40 dias e 40 noites não comeu nem bebeu, tendo se alimentado apenas com a visão e com as palavras do anjo que o acompanhava.

Transferindo toda essa rica simbologia do número 40 para o episódio das tentações, podemos afirmar que Jesus “refaz em sua história pessoal” a peregrinação do povo de Israel, durante a travessia do deserto; período conhecido como o Êxodo de Israel, o povo eleito. “Refazendo” a experiência do povo eleito, Jesus toma conhecimento dos “enganos e dos falsos caminhos da história”. Ele experimenta as mesmas tentações que afligiram o povo eleito, durante a travessia do deserto.

“Se és o Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães” (Mt 4, 3b). Assim diz a primeira tentação. Bem sabemos, que quanto mais premente é a necessidade, mais forte é também a tentação. Se Jesus pode participar do poder de Deus, por que não recorrer ao milagre, transformando uma pedra do deserto em pão e, assim, poder saciar sua fome? Com esse "milagre", porém, Ele renunciaria àquilo que escolheu ao se tornar homem: despojar-se dos atributos da sua divindade, condição que compartilhava como Filho de Deus, para ser radicalmente em tudo um ser humano, como qualquer um de nós (cf. Fl 2, 6-8). A proposta do diabo não consiste no simples ato de saciar a fome, mas no uso do próprio poder a favor de si mesmo.

Jesus, porém, retruca, dizendo: “Está escrito: não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4, 4// Dt 8, 3). Jesus mantém-se fiel a Deus pela "obediência". Obediência significa "escuta atenta", ou seja, somente aquele que submete todos os acontecimentos de sua vida à luz da Palavra de Deus (discernimento espiritual) é capaz de manter-se fiel à vontade de Deus ("não nos deixeis cair em tentação"). Como Cristo fez em toda a sua vida.

2. Segunda tentação 

Na segunda tentação, deparamo-nos com algo estranho. O diabo cita a Sagrada Escritura para atrair Jesus à sua "armadilha". Ele cita o Salmo 91, que fala da proteção que Deus concede ao homem de fé: “porque aos seu anjos deu ordens a teu respeito para que te guardem em todos os teus passos. Levar-te-ão na palma da mão, para que na pedra não tropece o teu pé” (Sl 91, 11-12). Estas palavras adquirem um peso ainda maior na medida em que são ditas na “Cidade Santa”, no lugar sagrado. De fato, o salmo citado está ligado ao Templo, de Jerusalém. Aquele que reza esse salmo espera para si proteção no Templo, pois a casa de Deus deve valer como lugar especial da proteção divina. Onde mais poderia o homem que crê em Deus sentir-se mais seguro que no espaço sagrado do Templo? O diabo demonstra ser conhecedor da Sagrada Escritura, cita o Sl 91 com precisão. Todo o diálogo da segunda tentação aparece formalmente como uma discussão entre especialistas da Escritura.

O debate teológico entre Jesus e o demônio é uma disputa que versa sobre a correta interpretação da Sagrada Escritura. E o conteúdo teológico, no caso da segunda tentação, diz respeito à imagem de Deus, ou melhor, diz respeito acerca de quem é Deus. Este debate pela definição da verdadeira imagem de Deus diz respeito diretamente à imagem de Jesus de Nazaré: “Se és o Filho de Deus, lança-te abaixo, pois está escrito: ‘Ordenará aos seus anjos a teu respeito, e eles tomar-te-ão nos braços, para que não tropeces nalguma pedra’” (Mt 4, 6). Então, como Jesus pode se intitular o Filho de Deus, se não dispõe de poder transcendente?

Jesus refuta o demônio, novamente citando o Deuteronômio: “Não deves tentar o Senhor teu Deus!” (Dt 6, 16). Há no Deuteronômio uma alusão à história de como o povo de Israel esteve ameaçado de morrer de sede no deserto. Levanta-se uma rebelião contra Moisés, que, na realidade, é uma rebelião contra Deus. Deus deve demonstrar, provar, que é Deus. Essa rebelião contra Deus é assim descrita na bíblia: “Eles submeteram Deus à prova, ao dizerem: o Senhor está ou não está no meio de nós?” (Ex 17, 7). Deus deve ser “provado”, como se experimentam mercadorias. Ele deve submeter-se às condições que nós definimos necessárias para nossa fé. Se Jesus não se submete à proteção prometida pelo Sl 91, então, obviamente, não é Deus. 

A partir desta cena ocorrida no “pináculo do Templo”, podemos fazer uma nova leitura a respeito da morte de Jesus, na cruz. Vejamos: Jesus não se atirou do pináculo do templo. Ele não saltou para o abismo. Ele não tentou a Deus. Mas ele desceu ao abismo da morte, à noite do abandono. Ele ousou dar este salto como ato de amor de Deus para com a humanidade. E, por isso, Jesus sabia que neste salto, em última instância, só poderia cair nas mãos do Pai. Assim se revela o “verdadeiro sentido” do Sl 91, o direito àquela última e ilimitada confiança de que lá se fala: quem segue a vontade de Deus sabe que nunca deixará de ter sua proteção ante todo e qualquer perigo com que se confronta. Tem a certeza de que o fundamento do mundo é o amor benevolente de Deus: onde ninguém pode ou quer ajudá-lo, pode continuar a confiar no Pai. Essa ilimitada confiança na bondade divina, para a qual a sagrada Escritura nos autoriza, é, todavia, algo completamente diferente da pretensão de colocar Deus a serviço dos nossos desejos e projetos. 

Ainda a respeito desta segunda tentação, é impossível não pensar na afronta dos sumos-sacerdotes, escribas e anciãos, quando Jesus agonizava na cruz: “Salvou os outros; a si mesmo não se pode salvar! (...) Confiou em Deus, livre-o agora se o ama, pois disse: ‘Sou Filho de Deus’” (Mt 27, 42-43). Mas Jesus é o “Servo do Senhor” (cf. Is 53-54). Tem confiança absoluta na proteção de Deus. Por isso não tem necessidade de verificá-la. Pouco lhe importa que essa confiança se concretize ou não num ato de poder. Como Filho, Jesus sabe que a verdadeira religião consiste em um relacionamento gratuito, amoroso e incondicional com o Pai. Mesmo abandonado na cruz, Jesus permaneceu confiando na bondade divina.

3. Terceira tentação

Vejamos a terceira e última tentação, o ponto mais elevado de toda a história. O diabo leva Jesus a um alto monte para que veja tudo o que há em volta. Mostra-lhe todos os reinos da terra e o seu resplendor e oferece-lhe o domínio do mundo (cf. Mt 4, 8-10). É a tentação mais sedutora: o poder. O diabo pede a Cristo que substitua o serviço pelo poder. Como as outras tentações, essa última pretende que o Cristo faça uso do poder num sentido diferente que lhe confere a missão de “Servo”.

Basicamente essa última tentação mostra que um poder faz falta a Cristo, e que esse poder ele não receberá de Deus, mas, sim, do diabo. E para alcançá-lo, Jesus deve adorar o diabo. Pois, somente o diabo pode entregar o mundo a Cristo: ele é o príncipe deste mundo. A perversidade do diabo consiste em querer a dominação pela dominação. Jesus rebate essa tentação afirmando: “Adorarás ao Senhor, teu Deus, e a Ele só prestarás culto” (Mt 4, 10). Na luta contra o diabo, Jesus venceu: à  mentirosa divinização do poder, Jesus contrapõe Deus como o único verdadeiro bem do ser humano. Por isso mesmo, só Deus deve ser adorado. O mandamento fundamental para Israel é também o mandamento fundamental para os cristãos: só Deus deve ser adorado. 

O relato das tentações termina da seguinte forma: “Deixa-o então o demônio, e eis que se aproximam anjos e o servem” (Mt 4, 11). Agora, de fato, se realiza o Sl 91, 11: os anjos se colocam a serviço de Jesus. Ele provou ser o “Filho de Deus”, e, por isso, sobre ele, como um “novo Jacó”, o pai de um Israel tornado universal, está o céu aberto” (cf. Gn 28, 12; Jo 1, 51). 

Jesus revive assim a experiência do povo de Israel no deserto. Mas ele o faz numa inquebrantável fidelidade. Chamado de “Servo”, no batismo, ele é tentado com relação ao conteúdo de seu messianismo. Se o diabo o fizesse duvidar da missão a Ele confiada, ou renunciar a ela, ao preferir um messianismo aparentemente mais eficaz, o diabo o desviaria da vontade do Pai. Jesus, porém, não possui outro alimento que o cumprimento da vontade do Pai. As tentações no deserto dão mostras de que nada jamais poderia abalar essa decisão.

A TEOLOGIA DA TENTAÇÃO

Que tipo de tentação Jesus sofreu? A teologia convencionou agrupar as diversas tentações em duas grandes categorias: as tentações que se originam da "carne" e do "mundo", e as tentações que têm por autor o "diabo". 

No primeiro caso, isto é, no caso de uma tentação que tem por origem a carne e o mundo, está a "preexistência do pecado", se não do pecado atual, pelo menos a presença do "pecado original". A “carne” não designa o corpo humano, como o termo corre o risco de ser interpretado, mas, sim, a totalidade das tendências (pulsões) e decisões humanas, enquanto se fecham num horizonte totalmente terrestre, avesso à transcendência divina. O “mundo” corresponde a esse cuidado puramente terrestre. Ora, a tentação originada da “carne” e do “mundo” significa que para fazer de Deus o centro absoluto da sua vida, o ser humano tem que "lutar constantemente contra tendências espontâneas de sua própria natureza", que o levam a limitar-se ao exclusivo horizonte terrestre. 

É evidente que Jesus jamais experimentou esse tipo de tentação. Jesus nenhuma conivência teve com o pecado. A vontade e a afetividade de Jesus não estão desorientadas. Como a propensão ao mal provém do pecado, é preciso levar em conta que a tentação do Cristo, relatada pelos evangelhos, não é dessa natureza. Na verdade, Jesus foi tentado pelo diabo. 

Quando Jesus nos deixou a oração do "Pai-Nosso", quis que a concluíssemos pedindo ao Pai que nos livrasse do "Maligno". A expressão usada não se refere ao mal em abstrato; a sua tradução mais precisa é o "Maligno". Indica um ser pessoal que nos atormenta. Jesus ensinou-nos a pedir cada dia esta libertação para que o seu poder não nos domine. 

Não pensemos equivocadamente que o demônio seja um mito, uma representação, um símbolo, uma figura ou uma ideia. Afirmou São Paulo VI, na Audiência Geral, de 15 de novembro de 1972, em Roma: "Uma das maiores necessidades é a defesa daquele mal, a que chamamos demônio. (…) O mal já não é apenas uma deficiência, mas uma eficiência, um ser vivo, espiritual, pervertido e perversor. Trata-se de uma realidade terrível, misteriosa e medonha. Sai do âmbito dos ensinamentos bíblicos e eclesiásticos quem se recusa a reconhecer a existência dessa realidade; ou melhor, quem faz dela um princípio em si mesmo, como se não tivesse - como todas as criaturas - origem em Deus, ou a explica como uma pseudo-realidade, como uma personificação conceitual e fantástica das causas desconhecidas das nossas desgraças".

Este engano leva-nos a diminuir a vigilância, a descuidar-nos e a ficar mais expostos. O demônio envenena-nos com o ódio, a tristeza, a inveja e os vícios. E assim, enquanto abrandamos a vigilância, ele aproveita para destruir a nossa vida, as nossas famílias e as nossas comunidades. 

Esse tipo de tentação não exige uma vontade ou uma afetividade desorientada em relação a Deus. Supõe unicamente uma situação objetiva que pode servir ao tentador de ocasião para insinuar uma dúvida sobre as intenções de Deus. E qual foi essa situação objetiva que o diabo aproveitou para tentar Jesus? Foi justamente a missão messiânica de Jesus, cercada de ambiguidades, que forneceu ao diabo as condições para tentá-lo. Que faz o diabo? Tira proveito de uma situação penosa para Jesus: a fome. Por que então, estando ele na penúria, não faria uso de seu poder miraculoso. Evidentemente, isso representaria o uso fora de sua missão de “Servo”. Isso seria duvidar da proteção divina, acentuar uma desconfiança. O “Servo” obedece à vontade divina em qualquer situação a que isso possa levar, por mais intolerável que possa parecer. 

A segunda tentação possui a mesma estrutura. Pressupõe em Jesus uma absoluta confiança em Deus. E por que, então, não provar a Deus? Verificar se Deus está de fato com ele, acima e apesar de tudo? Fazer uma experiência da confiança não seria já duvidar? O “Servo” prefere a obscuridade da uma confiança incondicional.

A terceira tentação é mais reveladora ainda. O diabo parece retomar o fio do pensamento que muitas vezes se apresentou a Jesus: a aparente pouca eficácia de sua vida e ministério. Sabe-se o quanto Jesus sofreu por não ter sido compreendido pelo povo: ele chorou sobre Jerusalém. E, muitas vezes, foi forçado a procurar o isolamento para fugir da vontade popular que queria transformá-lo em rei. O messianismo de serviço não lhe permitia fazer usos desses meios demasiadamente humanos, mas ao mesmo tempo parecia se entregar a uma eficácia enormemente limitada. O messianismo do “Servo” não será demasiadamente idealista? Não seria preferível uma adaptação temporal desse mesmo messianismo? Não seria preferível apresentá-lo de forma mais poderosa e mais substancial ao mundo, sem nada ocultar de suas orientações fundamentais? As dúvidas surgem da própria experiência, do fracasso da pregação de Jesus, do desnível entre a universalidade de sua mensagem e sua realização concreta. O diabo mesmo tira a conclusão que surgem de tais interrogações: o messianismo do “Servo” trai os homens a quem quer servir.

Qual a relação entre a tentação de Cristo com a tentação, a que nós, cristãos, somos submetidos? O próprio Jesus dá a resposta com a oração do “Pai-Nosso”: “não nos deixeis cair em tentação”. O cristão pede que seja preservado dessas situações. Se Jesus assim nos ensina a rezar, é porque a tentação mais temível, não é a que nasce da “carne” e do “mundo”, mas a que vem do "diabo", quando o amor benevolente de Deus desaparece de nosso campo de percepção. O cristão pode então gritar: “Onde está Deus”? E, como resposta, só encontra o silêncio. Deus se faz tão distante que a pessoa experimenta na própria vida o abandono de Cristo. Vive a mesma situação limite que experimentaram: Abraão quando Deus lhe pediu o sacrifício de Isaac; Jó durante sua doença; e Jesus em sua agonia. A confiança incondicional é o único caminho da salvação. Tais situações representam a suprema tentação para o cristão, pois atacam a fé em sua própria raiz: a não intervenção de Deus é sentida ali de uma maneira tão cruel, que poderia destruir a fé.

Termino com a advertência de São Pedro: “Sede sóbrios e vigilantes, pois o demônio vos rodeia como um leão a rugir, procurando a quem devorar. Resisti-lhe, firmes na fé” (1Pd 5, 8-9a).



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